quinta-feira, junho 5

Adeus ao Canalha Amarelo (crônica da Cora Ronai)


Era um jovem gato tigrado, amarelo, cem por cento vira-lata. Estava sendo embebedado de cerveja por uma turma de boçais que, ainda por cima, o chutavam de cá para lá, achando tudo muito divertido. De repente, um bípede pequeno, normalmente meigo e de aparência inofensiva, entrou como uma fúria bar adentro. Deu meia dúzia de berros com os marmanjos, pôs em questão sua virilidade e a profissão das senhoras suas mães, catou o gato e foi embora, com o mesmo ímpeto com que entrara. Quando chegou em casa, a um quarteirão do Moska, pé-sujo onde se deu a confusão, a Bia ainda estava enfurecida. Esperei que se acalmasse.Já tínhamos quatro gatos que, a essa altura, demonstravam claramente a sua opinião a respeito do recém-chegado. O que faríamos com ele? Bia sugeriu que lhe déssemos guarida até arranjarmos quem o quisesse. Encontrar lar para o gatinho não seria difícil. Passada uma semana, porém, descobrimos que difícil, mesmo, seria nos desfazermos dele: os dias voavam, e nenhuma de nós movia uma palha para arrumar o tal lar. Eu estava cheia de trabalho, a Bia estava cheia de provas. Num fim-de-semana deu praia. No outro não deu. Enquanto isso, ele ia se enturmando com os gatos da casa. Pelo sim pelo não, levei-o ao veterinário. -- Como se chama?Como o bichinho era teoricamente temporário, respondi a primeira coisa que me passou pela cabeça:-- Mosca.Na ficha, acrescentei a extensão .TMP, de “temporário”: a Famiglia Gatto sempre teve nomes com extensões, como arquivos de computador. Cátia e Tati, as mais velhas, eram .CAT; Keaton e Cotton, seus respectivos filhotes, eram .BAK, de backup. Mas como nada é mais permanente do que o temporário, o Mosca foi ficando, ficando... até nos esquecermos que estava só de passagem. (Nota tecnológica: o DOS, sistema operacional que exigia dos usuários o conhecimento das extensões de arquivo e seu significado, foi engolido pelo Windows, em que ninguém precisa saber mais nada. As extensões dos nomes da Famiglia tornaram-se irrelevantes, um private joke de usuários das antigas, e foram ficando pelo caminho.)
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Ao longo dos anos, como costuma acontecer com os gatos, o Mosca ganhou alguns apelidos. Foi Leão da Savana porque até hoje estou convencida de que, quando sonhava, se via no alto dos seus domínios, o rei do pedaço; além disso, vivia à espreita, sempre à espera de algum gato, perna ou brinquedo para o bote. E foi, sobretudo, o Canalha Amarelo, porque, como todo malandro de botequim, era, de fato, um perfeito canalha.Era a paixão das cozinheiras, que cortejava com a maior desfaçatez. Quando estávamos comendo, sentava-se à mesa, olhando para um ponto qualquer no horizonte, como se nada do que estivesse sendo servido o interessasse ou lhe dissesse respeito. Mas bastava que a Bia ou eu nos distraíssemos que, zás! lá vinha a pata cheia de unha, rápida como o raio, roubando um bife ou um pedaço de frango. O dono da pata voava com a presa para o quarto, onde se enfiava debaixo da cama, no único ponto da casa em que braço algum conseguia alcançá-lo -– e lá se fartava com a caça. É claro que não nos distraíamos sempre, para que ele não perdesse a emoção da aventura; e é claro, também, que sempre corríamos atrás, aos gritos, como se estivéssemos muito zangadas.
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Mosca teve duas grandes paixões: Mamãe e a Tutu, uma gatinha ainda mais vira-lata do que ele, que a Bia trouxe da rua um ou dois anos depois. Foi amor à primeira vista. Os dois viviam juntos, dormiam abraçados, trocavam manifestações constantes de carinho. Era comovente vê-los juntos.O caso com Mamãe foi mais complicado. Começou quando ela passou uma temporada aqui em casa, e o Mosca decidiu adotá-la. Seguia-a por toda parte, dormia no seu quarto e fazia cenas de ciúme quando outro gato tentava filar carinho. Um dia, Mamãe voltou para o sítio. O Canalha Amarelo ficou visivelmente abalado. Expliquei que Mamãe mora em Friburgo, que só esteve aqui de passagem, que não era nada pessoal, mas não adiantou. Quando ela reapareceu, meses depois, fez questão de ignorá-la. Não houve agrado ou suborno escancarado da Mamãe que o fizesse mudar de idéia. Com o tempo, felizmente, a atitude intransigente passou; o Mosca não era de guardar rancor. Mas, pelo sim pelo não, nunca mais se dedicou a bípede algum como se dedicou a Mamãe, naqueles meses cariocas.
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Em março passado, caiu doente. O diagnóstico, peritonite infecciosa felina, era uma sentença de morte. A doença é altamente contagiosa entre gatos, mas como os da Famiglia vivem juntos há tantos anos, achei que isolá-lo dos demais seria não só inútil, como cruel: tirar a sua qualidade de vida, justo no fim, era coisa que eu não faria. Graças ao dr. Allecx Ferrari, ainda ganhou dois meses bem razoáveis. Estava fraquinho, mas curtia o sol que entrava pela janela, comia com apetite, tinha energia suficiente para pular para os seus cantos prediletos e, sobretudo, passou muitas e muitas horas abraçado com a Tutu.Na sexta passada, nem o barulho de latas sendo abertas na cozinha o estimulou a deixar seu cantinho. No sábado, o quadro se agravou além de qualquer esperança: já não conseguia sequer se manter de pé. O Canalha Amarelo despediu-se pouco depois da meia-noite, quietinho, no meu colo. Manteve até o fim o brilho no olhar que, 15 anos antes, me convenceu que, apesar da aparência singela, no peito daquele gatinho batia o coração de um Leão da Savana. (O Globo, Segundo Caderno, 5.6.2008)