quarta-feira, janeiro 24

Um pouco de Clarice para a alma...

"Sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real. Ainda tenho medo de me afastar da lógica porque caio no instintivo e no direto, e no futuro: a invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro. Desde já é futuro, e qualquer hora é hora marcada. Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. (...)"
"(...) Vou crescendo com o dia que ao crescer me mata certa vaga esperança e me obriga a olhar cara a cara o duro sol. A ventania sopra e desarruma os meus papéis. Ouço esse vento de gritos, estertor de pássaro aberto em oblíquo vôo. E eu aqui me obrigo à severidade de uma linguagem tensa, obrigo-me à nudez de um esqueleto branco que está livre de humores. Mas o esqueleto é livre de vida e enquanto vivo me estremeço toda. Não conseguirei a nudez final. E ainda não a quero, ao que parece. (...)"
"(...) Não quero perguntar por quê, pode-se perguntar sempre por que e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta? (...)"
"(...) Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. (...)"
"(...) Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero o seu fluxo. (...)"
Trechos de "Água Viva", de Clarice Lispector

segunda-feira, janeiro 22

Acostuma-se com a sombra. Dolorosa, mas previsível. Quando os primeiros raios solares finalmente reaparecem, mesmo que tímidos, mas sem aviso prévio, os olhos resistem, é difícil abri-los. Admitir o medo é um ato de coragem. É reconhecer que se é frágil, que se tem um passado que ainda traz lembranças penosas.

Antes da sombra, havia muita escuridão. Breu total. Foi preciso decretar o fim do tempo, concentrar-se apenas no presente, ignorando o passado e negando o futuro. Medo de que o mesmo filme fosse parar de novo no retroprojetor. Seria demais, seria insuportável. Nunca se pode dizer que já sofreu o bastante, afirmar que dor maior não existe.

A sobriedade e o auto-conhecimento têm seu preço. Como eu já disse, consegui deixar o breu. Estava na sombra e agora talvez esteja em contato com o mormaço - digo "talvez", porque posso estar próxima ao sol, mas por medo, estar chamando-o de outro nome. Sigo em frente, mas às vezes me pego querendo imitar um caranguejo - é o costume. A sombra é a linearidade, o "porto seguro". A lembrança da escuridão ainda é forte. Quase sempre me pego negando essa proximidade. Mas uma situação parecida, uma palavra repetida, um contexto familiar me remetem à ela. Quando isso ocorre, tenho o impulso de fugir. De jogar para o alto qualquer reflexão mais apurada sobre o que sinto, ou o que penso. De brincar de estátua.

Admitir o medo é um ato de coragem. É reconhecer que se é frágil, que se tem um passado que ainda traz lembranças penosas. Tocar no centro da ferida já é um ato a mais. Acho que ainda não estou preparada.